Há dois anos, El Salvador chamava atenção da imprensa internacional ao se tornar o primeiro país do mundo a transformar o Bitcoin (BTC) em moeda legal. Nos discursos em prol da medida, o polêmico mandatário da nação, Nayib Bukele, dizia que a criptomoeda iria gerar mais inclusão financeira — já que 70% da população local não tinha conta bancária — e ser uma alternativa para remessas internacionais, além de atrair investimentos.
Hoje, no entanto, o cenário no pequeno país da América Central não é exatamente aquele imaginado pelo político.
A população ainda não abraçou a criptomoeda, conhecida por sua volatilidade, e só 1,3% das pessoas que enviam dinheiro para fora o fazem por meio de cripto, segundo dados do banco central do país. No México, para efeito de comparação, 4% dos moradores optam por criptomoedas para fazer remessas internacionais, segundo dados da plataforma Chainalysis.
O BTC não caiu nas graças dos salvadorenhos em parte por causa da usabilidade da criptomoeda, disse Renato Nobile, CEO e gestor da Buena Vista Capital. Segundo ele, ainda é difícil baixar uma carteira cripto, configurar a conta, guardar as senhas e lidar com toda a segurança das plataformas de negociação, que constantemente são alvos de hacks.
“Tem melhorado com o passar dos anos, mas ainda é muito complexo para o usuário comprar um Bitcoin. Acho que ainda vai levar muito tempo para chegar naquele ponto em que você usa algo novo, mas nem percebe a tecnologia por trás, como ocorre com o Pix, que é muito simples e fácil, e em dois ou três cliques você está fazendo a transferência para outra pessoa”, opina.
Quando anunciou a adoção do Bitcoin, em setembro de 2021, o governo de El Salvador abriu uma carteira digital de criptomoedas para os cidadãos, chamada Chivo, e deu para cada um o equivalente a US$ 30 em BTC. O aplicativo, no entanto, foi alvo de ataques virtuais, deixando a população amedrontada. Um ano depois, segundo o Escritório Nacional de Pesquisa Econômica (NBER, na sigla em inglês), 60% dos usuários iniciais desistiram da wallet.
Nobile disse que, apesar dos problemas, a introdução da criptomoeda no geral é positiva, principalmente pela instabilidade financeira presente no país. “Acaba dando uma segunda opção para a população, algo bem diferente do que acontece na Argentina, que tem vários tipos de versão de câmbio oficial e não oficial, o que é muito ruim”.
Preferência pelo dólar
Outro ponto que assustou a população de El Salvador é a volatilidade do Bitcoin. De setembro de 2021 para cá, a criptomoeda desvalorizou 42%, caindo de cerca de US$ 45 mil para US$ 26,5 mil na sexta-feira (22), segundo o agregador CoinMarketCap.
Em meio a esse vaivém de preço e das dificuldades tecnológicas, os cidadãos ainda preferem transacionar em dólar, que também é moeda legal do país, disse Angela Dalton, CEO da Signum Growth Capital, em evento promovido no fim de agosto pela gestora de investimentos norte-americana Ark Invest.
“A conscientização é alta, mas o uso ainda é baixo. No entanto, há um sentimento geral de orgulho na população por El Salvador ser um dos primeiros a adotar novas tecnologias”, disse ela, mencionando que o uso de BTC parece mais prevalente em destinos turísticos, como a “Bitcoin City” e a “Bitcoin Beach”.
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Finanças
Apesar das dificuldades com o Bitcoin e de críticas de pesos-pesados da economia global, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), El Salvador surpreendeu a todos no mês passado ao entregar títulos soberanos com impressionantes retornos de 70% — os melhores entre os bonds em dólar dos mercados emergentes neste ano.
Parte da alta se deve à postura do presidente do país contra gangues, que gerou quedas nos índices de homicídio, e seu compromisso em pagar dívidas. Em meio a esse cenário, gigantes como JPMorgan, Eaton Vance e PGIM Fixed Income recomendaram a compra dos títulos.
No entanto, segundo especialistas, o risco no país continua alto, principalmente por causa de preocupações com abusos dos direitos humanos e a obsessão de Bukele com Bitcoin.
“A sustentabilidade fiscal do governo ainda é uma preocupação, e, apesar das recomendações de investimento, o governo ainda paga taxas de juros altas por conta do risco fiscal”, disse Marcelo Botelho da Costa Moraes, professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FEA-RP/USP).
Moraes também disse que a adoção do BTC no curto prazo não foi positiva. Além disso, falou, ainda há dúvidas se abrir mão do controle sobre a própria moeda pode ser arriscado no longo prazo. “Já especificamente com relação à criptomoeda, o próprio governo de El Salvador investiu suas reservas em Bitcoin e a queda na cotação da criptomoeda fez o governo amargar prejuízos desde então”.
Além de adotar o BTC como moeda legal, desde 2021 o país vem comprando a criptomoeda. De lá para cá, no entanto, seu portfólio cripto encolheu 37%, o equivalente a US$ 42 milhões, segundo o site nayibtracker.com, que acompanha a movimentação de BTC do tesouro da nação. De acordo com cálculos feitos pela Bloomberg em abril, o país tem 2.546 unidades de BTC, ou cerca de US$ 68 milhões na cotação atual.
Ainda assim, o governo pretende atrair mais interessados em financiar o país com ajuda da criptomoeda, por meio de uma nova modalidade de títulos soberanos denominados em Bitcoin. A proposta, adiada no ano passado, ganhou em janeiro de 2023 aval do Congresso (amplamente controlado por Bukele) para virar lei, e traz expectativa de se concretizar antes de abril de 2024, para quando está programado o próximo corte nas emissões da moeda digital, o halving.
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